Sobre Alberto Carneiro
Caracterizando-se por uma aproximação à paisagem e à natureza e por um relacionamento com o material escultórico de carácter ontológico e de identificação/identidade do seu próprio corpo com as matérias naturais, a obra de Alberto Carneiro definiu-se, desde cedo, numa grande estabilidade de valores simultaneamente poéticos e conceptuais. À pedra e à madeira, sempre trabalhadas a partir do seu ser "árvore" e "montanha", acrescentam-se o ferro, o bronze, o barro, o vidro, o espelho, a fotografia, o desenho e elementos naturais. Técnicas tradicionalmente escultóricas abrem-se a outras linguagens e ao talhe manual e mecânico dos materiais acrescentam-se processos como a agregação e organização de matérias naturais, a escrita caligráfica ou incisa, o desenho, gravações sonoras ou impressões olfactivas. Ao longo dos anos, o escultor tem efectuado uma permanente reflexão escrita sobre o seu próprio trabalho e sobre o acto de criação, num vasto conjunto de "aforismos" e de "notas para um diário" presentes nos seus catálogos de exposição e livros de artista, bem como na imprensa.
Alberto Carneiro nasceu em São Mamede do Coronado, em 1937. Após ter trabalhado como imaginário nas oficinas de santeiro da sua terra natal, entre 1948-58, ingressa, algo tardiamente, na Escola Superior de Belas Artes do Porto, onde se forma em Escultura em 1967. Aqui realiza a sua primeira exposição individual (Homenagem ao autor da Vénus de Willendorf, 1967), apresentando um conjunto expressivo e vitalista de esculturas em madeira, pedra e gesso patinado, e desenhos. Após ganhar o Prémio Nacional de Escultura, no Verão de 1968, parte para Londres, em Setembro, a fim de realizar o Advanced Course in Sculpture da Saint Martin's School of Art, que completa em 1970.
Estes são anos de mutações profundas ao nível da abordagem à escultura por parte de Alberto Carneiro, que questiona o seu próprio virtuosismo técnico, adquirido nas oficinas de santeiro, o recusa o modelo estatuário vinculado ao ensino oficial português. As pesquisas do escultor assentam numa série de leituras teóricas (dos quais o artista tem destacado a importância de Gaston Bachelard, mas a que devemos acrescentar o interesse pela linguística estruturalista e pelos fenómenos associados à visualidade, bem como o pensamento oriental e a psicologia profunda) e no experimentalismo programático fomentado pela escola londrina. Abandona o talhe directo a favor da manipulação de matérias tais como árvores, canas, pedras, flores, água, etc., que se apresentam agora na sua realidade natural e simbolizam-se nos elementos essenciais (terra, água, fogo, ar). Ao mesmo tempo, um conjunto de novos materiais são introduzidos no seu trabalho, tais como o acrílico, cordas e fotografias e preto e branco.
Na sua primeira exposição individual após o regresso ao Porto, em 1970 (Galeria Alvarez, 1971), Alberto Carneiro apresenta O caderno preto (1968-71), Os quatro elementos - segunda homenagem a Gaston Bachelard (1968-70) e Uma linha para os teus sentimentos estéticos (1970-71). Partindo de uma proposta de contornos ontológicos, onde a obra de arte possa referir-se e justificar-se enquanto processo de abertura comunicativa e relacional com o outro e com a realidade, os trabalhos aqui apresentados assumem os princípios fenomenológicos de um ser envolvido na e pela concretude das coisas. No centro desta problemática está uma nova consciência das qualidades sensitivas dos espaços e das matérias despoletada por um trabalho da memória e da rememoração, o que, no caso concreto do escultor, reenvia para a vivência rural e para o universo paisagístico em que viveu até aos 21 anos, na sua terra natal. A partir daqui, as instalações escultóricas de Alberto Carneiro procuram, sistematicamente, esvaziar os potenciais significados da obra de arte e proceder à abertura de um espaço significante no seu interior, como movimento de interpelação à experiência directa e não mediada do espectador. Radica-se aqui, com efeito, o sentido último das suas "Notas para um manifesto de uma arte ecológica" (1968-72), publicadas na Revista de Artes Plásticas em 1973.
Ao longo dos anos 70, várias obras desenvolvem estas premissas, como O Canavial: memória-metamorfose de um corpo ausente (1968), As três extensões da natureza (1968-69), a Operação estética em Vilar do Paraíso (1973), Trajecto dum corpo (1976-77), Arte corpo/corpo arte (1976-78), A floresta e O ribeiro (ambas de 1978) e Corpo rio (1981): uma série de dispositivos realçam a ideia de representação imagética contida na realidade percepcionada, através de mediações como a transferência (entre um dentro e um fora), a equivalência ou a semelhança (entre a árvore e o homem, entre a água e a imagem), a inversão (os reflexos e a fotografia), o intervalo (o sonho e a introdução do aparente na realidade), ou a repetição (a rememoração da matéria natural).
A realidade como espelho imagético, de duplicação objectiva, vai também, à medida que a década avança, adquirindo importância nas obras em que Alberto Carneiro surge fotografado nos ambientes naturais em que desenvolve acções de carácter performativo onde manipula e marca elementos naturais - areia, feixe de vimes, rocha - e realiza operações em que a vertente estética das actividades campesinas se sobrepõe ao seu carácter utilitário (noção por si consolidada num estudo efectuado em 1976 e subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian). No regresso ao ateliê, essas imagens são trabalhadas a partir de especificidades intrínsecas ao medium fotográfico
(a inversão do processo de revelação da película no papel, a duplicidade, o
reflexo, a montagem, a sequência, a repetição) e organizadas em instalações
posteriormente apresentadas nos espaços expositivos.
O seu trabalho adquire, também, visibilidade institucional. Logo em 1971, é Prémio da Crítica Soquil - Menção Honrosa, com a obra Uma floresta para os teus sonhos (1970). É um dos expositores regulares da Galeria Quadrum, onde mostra pela primeira vez várias das suas obras deste período. Em 1976 realiza a sua primeira exposição antológica, no Centro de Arte Contemporânea do Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto e, no ano seguinte, participa na Alternativa Zero (Galeria Nacional de Arte Moderna, Belém). Ainda em 1976 e 1977, integra a representação oficial das Bienais de Veneza e de São Paulo, no seguimento das quais realiza longas viagens por Itália e pelo Brasil. Num percurso confluente com a actividade artística, dedica-se também ao ensino, integrando o corpo docente da ESBAP em 1971, onde é professor do Curso de Escultura (até 1975) e do Curso de Arquitectura (até 199, já na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto), aqui sendo o responsável pela cadeira de Desenho da Arquitectura. Entre 1971-85, lecciona e faz parte da equipa que coordena a orientação artística e pedagógica do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.
O corpo subtil (1980-81) apresenta-se, na Galeria Quadrum, como um momento de viragem, apontando para a presença crescente do pensamento oriental nas suas obras. A peça assenta em 84 aforismos que percorre os doze "caminhos" que sistematizam o seu trabalho (terra, vida, espaço, água, corpo, arte, labirinto, árvore, ar, morte, tempo e fogo), traçando um percurso de meditação e revelação que concretiza um lugar de encontro do corpo com o mundo, ou da consciência sensível com a consciência transcendente. Assumindo-se como uma obra-programa, O corpo subtil é, simultaneamente, a finalização de um processo de trabalho que vem de trás e o ponto de partida para um novo conjunto de obras que se despojam dos elementos técnicos que, na década anterior, materializavam as noções de reflexividade e transferência entre a realidade natural e a sua condição imagética. O movimento de recuperação das matérias naturais e da sua transformação em material escultórico, ultrapassando a condição de projecto que assistira às anteriores pesquisas e reposicionando a objectualidade da escultura como mediação ontológica do ser no mundo, torna-se a marca mais evidente do seu trabalho a partir daqui.
Ao longo da década de 80, novas obras em madeira trabalhada (com recursos pontuais ao bronze e à pedra) prosseguem o mesmo carácter evocativo da memória. Percursos na paisagem - memória de um corpo sobre a terra (1983-84), Árvore: mandala de fogo (1989-90), ou Evocações d'água (1991-92) revelam e sugerem
os movimentos e as relações de leveza e gravidade dos elementos naturais na
superfície da madeira. Esta, e mais amplamente, a árvore, transformam-se no
corpo onde se inscreve, imageticamente, os gestos e as sensações que presidem à
percepção da realidade. Flor e fruto para Brancusi (1982-84) revela uma renovada concentração no talhe e na incisão
(mediados por instrumentos mecânicos) das matérias que procura uma
essencialidade elementar e formal de raiz brancusiana. Paralelamente, as Variações
sobre um haikai de Bashô
(1984-85), tal como os poemas tradicionais japoneses, concentram na sua
brevidade substantiva a intensidade de sensações adjectivas, explicitando, no
seu trabalho, a integração das polaridades sujeito/mundo no interior das
matérias naturais sulcadas, lugar onde fica registado, como uma imagem, o seu
próprio potencial medial e conectivo na concretização da noção (fenomenológica,
mas também com ressonâncias orientais) de um ser situado no mundo.
A partir dos anos 90, a
prática continuada do talhe das matérias naturais e da complexa organização
espacial das suas obras (seja entre os vários elementos que as constituem, seja
no lugares em que se expõem) cruza-se com a recuperação de instalações que
enfatizam a materialidade da árvore (como em Uma árvore é uma obra de arte
quando recriada em si mesma como conceito para ser metáfora, 1992), com a renovação de procedimentos herdeiros
dos jogos de inversões e reflexões estabelecidos nas suas séries fotográficas
da década de 70, que se transferem agora do plano da imagem bidimensional para
a objectualidade de obras como Sobre os ventos (1997-98), Sinais e sabedoria da floresta (2000-01) ou Murmúrios da floresta (2004), reiterando características projectuais de anos anteriores,
agora sob o signo de uma reflexão cultural e antropológica sobre os lugares que
acolhem as suas obras (prolongando uma prática desde sempre presente na sua
escultura pública), com acontece com Os caminhos da água e do corpo sobre a
terra (2003).
A par da escultura, uma
actividade intensa em torno do desenho tem vindo a ser tornada visível pelo
artista mais recentemente, através de várias exposições, entre elas, a
antológica de desenho realizada em 2005 no Espaço Chiado 8, Lisboa, e na
Galeria Fernando Santos, Porto. O desenho, não obstante o seu carácter de
suporte de reflexão escultórica, tem alcançado, no seu trabalho, plena
autonomia, iluminando, ultimamente, o sentido de uma atenção cada vez mais
orientada para os ritmos e tempos próprios da natureza, e que tem encontrado no
seu jardim particular um palco privilegiado e intimista de prospecção, e de
onde resultaram desenhos como Sobre as flores do meu jardim (2000-02) e esculturas como Sobre o meu jardim (1998-99).
Até
aos dias de hoje, as
exposições continuam a marcar o seu trabalho, nomeadamente as duas antológicas organizadas, em 1991, pelas Fundações Gulbenkian e Serralves e, em 2001, pelo
Centro Galego de Arte Contemporánea, em Santiago de Compostela, apresentações
que permitiram, respectivamente, uma visão global do seu trabalho a uma nova
geração de artistas e críticos portugueses e a consolidação do interesse da
crítica e da historiografia espanholas pela obra do escultor. Mais galardões
(Prémio Nacional de Artes Plásticas AICA-SEC 1985, Prémio de Artes Plásticas
Antena 1 1987-88, Prémio Tabaqueira Arte Pública 2004, e Prémio de Arte Casino
da Póvoa 2007) e novas viagens (Marrocos em 1983, Jugoslávia, Bulgária, Turquia
e Grécia em 1984, Áustria e Alemanha em 1986, Nova Iorque e EUA, Praga e
Budapeste em 1988, Índia, Nepal, China e Japão entre 1993-95, Chile, Peru e
Bolívia em 2006) caracterizam também as últimas décadas. No âmbito da arte
pública, deve assinalar-se, ainda, a realização de uma primeira obra em
Konstanjevica, na Eslovénia, em 1986, a convite do Simpósio Internacional de
Escultura Forma Viva, a que se seguiram outras, nomeadamente em Gateshead (Inglaterra, 1995-969), no Parque Metropolitano de Quito (1997-98), em Puyô
(Coreia do Sul, 1998), no Vale de Ordino (Andorra, 2002), ou em Huesca (2006) –
uma vertente do seu trabalho a que se deve juntar, também, a criação dos
Simpósios Internacionais de Escultura de Santo Tirso, desde 1991, com vista à
constituição de um Museu Internacional de Escultura Contemporânea ao Ar Livre (com
conclusão prevista em 2012), bem como a criação do Parque Internacional de
Escultura Contemporânea de Carrazeda de Ansiães (2002-2009).
Catarina Rosendo
Bibliografia seleccionada
Escritos de artista
CARNEIRO, Alberto, Das notas para um diário e outros textos. Antologia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007 (recolha, organização e bibliografia: Catarina Rosendo).
Catálogos de exposições
Alberto Carneiro. Dezembro 1968 - Setembro 1976, Porto, Centro de Arte Contemporânea - Museu Nacional Soares dos Reis, 1976 (textos: Fernando Pernes, Ernesto de Sousa, Fernando de Azevedo).
Alberto Carneiro, exposição antológica,
Lisboa, Porto, Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação
de Serralves, 1991 (textos: José Sommer Ribeiro, Fernando Pernes, Bernardo
Pinto de Almeida, Guilhermina da Luz, Flávia Monsaraz).
Alberto Carneiro. Evocações d'água: trinta e cinco esculturas para uma instalação, Porto, Galeria Pedro Oliveira, 1993 (texto: Bernardo Pinto de Almeida).
Alquimias. Dos pensamentos das artes. 1ºs Encontros de Arte, Coimbra, Associação Nacional de Farmácias, 2000 (textos: Javier Maderuelo, José Ernesto de Sousa, João Fernandes, Delfim Sardo, Bernardo Pinto de Almeida, João Lima Pinharanda).
Alberto Carneiro, Santiago de Compostela, Centro Galego de Arte Contemporánea, 2001 (textos: Raquel Henriques da Silva, João Fernandes, Santiago B. Olmo).
Alberto Carneiro, Funchal, Lisboa, Museu de Arte Contemporânea - Fortaleza de São Tiago, Porta 33, Assírio & Alvim, 2003 (texto: Alexandre Melo).
Alberto Carneiro. Desenhos 1962-2004, Porto, Galeria Fernando Santos, 2005 (texto: Manuel António Pina).
Alberto Carneiro. Árboles, Huesca, Centro de Arte y Naturaleza, Fundación Beulas, 2006 (textos: Alberto Ruiz Samaniego, Javier Maderuelo).
Volumes
ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Alberto Carneiro. Lição de coisas, Porto, Póvoa de Varzim, Campo das Letras, Casino da Póvoa, 2007.
CARLOS, Isabel, Alberto Carneiro. A escultura é um pensamento, Lisboa, Editorial Caminho, 2007.
ROSENDO, Catarina, Alberto Carneiro. Os primeiros anos (1963-1975), Lisboa, Instituto de História da Arte/Estudos de Arte Contemporânea/FCSH-UNL, Edições Colibri, 2007.